Por que nossa produção acadêmica em administração não tem nenhum impacto mundial? Último artigo analisando os problemas
Dado o interesse que os artigos anteriores provocaram e os muitos comentários com pontos relevantes, dava para continuar a discussão por mais tempo. Mas para a coisa não ficar parecendo novela mexicana que nunca termina, trago nessa semana a última parte da análise de alguns problemas que vejo na área acadêmica de administração no Brasil. A intenção não é esgotar o assunto, porque há vários outros fatores levantados por alguns dos comentários que mereceriam uma análise mais detalhada – o que pode vir no futuro. Mas vou parar por aqui essa série inicial, passando a bola para quem mais quiser levar adiante o tópico.
Do artigo da semana passada, vários comentários ressaltam o lado prático da administração - o que eu concordo plenamente, e por isso o ensino deve envolver muitos casos, projetos, interações com a prática. Mas o que não concordo é com essa premissa que muitos têm que só a experiência habilita alguém a ensinar o que fazer. Experiência é uma forma demorada de aprendizado. Dá para aprender por outros processos as razões por trás do "como", e ensinar isso aos alunos, que vão colocar em prática o que aprenderam. E não há contradição: prática e teoria andam juntas; acadêmicos observam a prática para gerar suas teorias; administradores aprendem teorias para melhorar suas práticas. Cada um focado em um dos lados, explorando a sinergia entre duas formas complementares de gerar novos conhecimentos.
Bom, vamos aos problemas que eu quero ainda explorar:
Problema 1: A visão que escolas são empresas
Virou "oportunidade de negócio" no Brasil o setor de educação, e junto veio a moda de considerar que escola deve ser administrada como empresa. O modelo "com fins lucrativos" pode até dar certo para "popularizar" o ensino superior (mas daí vem a discussão se isso é bom ou não para o país, algo que foge do escopo dessa discussão), mas para escolas que se pretendem líderes na geração e disseminação de conhecimento, a coisa não funciona muito bem – em qualquer área de conhecimento. As melhores universidades do mundo dão prejuízo, e só se mantém porque recebem recursos de empresas, ex-alunos ou governo. Não porque elas são mal administradas, mas porque manter um padrão de excelência requer recursos que vão além do que pode ser recuperado via mensalidades dos cursos que elas oferecem.
Mas além da questão de ser com fins lucrativos ou não, muitas escolas acham que ter boa gestão significa administrar escolas como se fossem empresas. E colocam no comando executivos que não tem nenhuma noção de como funciona o mundo acadêmico, instituindo práticas que acabam mediocrizando as instituições.
A geração de conhecimento de ponta requer uma série de práticas que, vistas de fora, podem parecer ineficientes e idiosincráticas demais. Mas a coisa funciona bem: nas melhores escolas, os professores têm um peso enorme na administração da instituição, podendo até demitir o diretor da escola. Além disso, a grande maioria dos cargos decisórios são ocupados por professores de forma temporária: depois de 2 a 5 anos eles voltam a ser somente professores e o cargo administrativo é ocupado por outro professor.
São poucas as pessoas de fora do mundo acadêmico que conseguem ter sucesso em ambientes assim. Um exemplo: nos últimos anos, as 3 melhores escolas da Europa colocaram no cargo de diretor ("Dean") profissionais vindos do "mercado" (ou seja, de fora da academia). Nenhum durou longo tempo no cargo, sendo substituídos por acadêmicos. Não vou me alongar hoje nas razões pelas quais isso acontece, mas depois de ter observado governança de muitas escolas pelo mundo, eu acho que elas funcionam melhor quando são administradas por acadêmicos, e de uma forma bem diferente de como se administram empresas. Os objetivos são bem diferentes, a forma de criar valor bem diferente, a função social diferente, e portanto as escolas demandam uma gestão diferente – que poucas pessoas "do mercado" conseguem entender.
Problema 2: Conferências não resultam em melhores artigos
De uma forma geral, enviar artigo para uma conferência é o passo inicial no processo de publicação: você manda o artigo para a conferência, esse artigo passa pela avaliação e comentários de revisores da sua área (outros professores que fazem pesquisa em áreas similares), e você usa esses comentários para revisar o artigo e prepará-lo para uma publicação. Isso assume que seu artigo será revisado com cuidado – e portanto é necessário não sobrecarregar os revisores para que eles possam trazer comentários relevantes para a futura publicação do artigo. Na conferência da Academy of Management, por exemplo, revisores nunca recebem mais do que 3 artigos para revisar (e tem ao redor de 5 a 6 semanas para essa tarefa). E como cada artigo passa por 3 revisores, os autores recebem umas 2 páginas de bons comentários.
Já no Brasil... a maior conferência em administração, o Enanpad, geralmente resulta em 2 ou 3 linhas de comentários, quando muito. Serão nossos professores mais preguiçosos no seu trabalho voluntário de revisor? Não, não: o sistema que é insano. Pelo menos até onde eu acompanhei, cada revisor recebia de 10 a 15 artigos para revisar em 3 semanas. Como são muitos artigos em muito pouco tempo, eles só selecionam "esse aceito, esse rejeito", numa lógica às vezes estranha: já houve artigos premiados internacionalmente que foram rejeitados na Enanpad, e artigos muito ruins que passam no processo de seleção. Mas não dá mesmo para fazer um trabalho decente com tantos artigos para revisar em tão pouco tempo. Ah, e para complicar tudo, tinha um sistema de submissão que rejeitava artigos automaticamente por detalhes de formatação (se uma figura tivesse fonte menor, o sistema rejeitava automaticamente, e não avisava: os autores só descobriam isso quando iam checar os resultados). A forma era mais importante que o conteúdo.
Nos anos que dei aula no Brasil (2002 a 2007), esse problema sempre acontecia, muitas promessas de mudança eram feitas, mas nada mudava. A partir de um certo ponto eu me recusei a revisar artigos, porque não concordava com o sistema – tive que dizer não para colegas que admiro porque eu achava que era a única forma de mudar algo: se todos os professores recusassem a tarefa de revisar, o sistema teria que mudar. Mas acho que ninguém me acompanhou na "greve", e parece que até hoje nada mudou muito. Fica aqui a proposta então: greve!
Problema 3: A linguagem empolada do meio acadêmico
Como tem acadêmico que fala e escreve complicado no Brasil! Artigos em terceira pessoa (coisas como "Fez-se..." o que dá vontade de perguntar "fez-se quem, cara pálida?"), uso de termos que parecem resgatados da Carta de Pero Vaz de Caminha, intonação de "intelectual" ao falar para passar uma imagem de impenetrável... isso tudo cria uma distância entre o acadêmico e os alunos que reforça a premissa – errada, como discuti semana passada – que teoria e prática são coisas distantes e sem conexão.
Está mais do que na hora de refrescar a linguagem acadêmica. Acabar com o mito que texto para ser "científico" tem que ser escrito em terceira pessoa e "neutro", criar uma comunicação mais direta, concisa e com mais estilo. Menos Camões, mais Clarice Lispector e Ana Cristina César.
Problema 4: Really? Ich muss parler d'autres linguages?
É. Precisa. Minha pátria é minha língua, mas para se comunicar com o mundo na área de negócios o inglês é essencial. Os chineses sabem disso, e logo terão a maior população com domínio da língua inglesa no mundo. E, claro, além do inglês, obrigatório, outras línguas também ajudam.
Brasileiro em geral reclama que norte-americano é monoglota (verdade no passado, mas a situação tem mudado nos EUA), sem perceber que o nível de domínio de língua estrangeira no Brasil ainda é muito ruim no geral. Enquanto nossos acadêmicos não dominaram o inglês, o inglês os dominará.
Problema 5: "Gestores" é que capturam valor!
Fecho em círculo, com um problema ligado ao primeiro item discutido lá em cima: com essa premissa que escolas são empresas, os tais "coordenadores" e "diretores" tem um poder enorme de decisão nas escolas brasileiras – poder que fica normalmente com os professores no resto do mundo. Mas há um problema ainda maior por trás disso: ser "coordenador" é a forma de ganhar mais.
Nos EUA os cargos de coordenador de curso ou departamento não envolvem nenhum aumento de salário: enquanto estiver no cargo, o professor continua com seu salário normal mas dá uma carga menor de aulas para compensar o tempo extra no cargo administrativo. Depois de alguns anos no cargo (2 a 5 anos geralmente, dependendo do cargo), volta a sua posição de professor e algum outro o substitui. Ninguém vira "chefe" de forma permanente (o que evita abusos de poder) nem ganha mais por isso.
No Brasil, o cargo administrativo é a única forma para o acadêmico ganhar um salário melhor. Daí quem chega nesse cargo acaba ficando lá por décadas, o que é receita para estagnação.
Isso quando não ocorre algo muito pior: em algumas escolas, os coordenadores ganham tanto a mais e tem um poder tão grande (decidindo por exemplo quem vai ter acesso ou não a oportunidades de consultoria ou cursos executivos que pagam bem aos professores) que isso acaba criando um clima interno de disputa política que mediocriza a produção acadêmica e o ensino. Todos querem dominar as fontes de receita extra. Em algumas escolas, há diferenças que chegam a 10 para 1 no salário mensal dos professores de um mesmo departamento – quem é coordenador ou tem melhor acesso a cursos executivos ganha muito, mas muito mais que os professores que estão lá para cumprir sua missão de pesquisa e ensino. O curioso disso é que os que ganham esses enormes salários não conseguiriam arranjar emprego em nenhuma escola de destaque fora do país, enquanto os que ganham o salário normal poderiam estar ganhando muito mais no exterior. Ou seja, o talento não é recompensado de forma justa. Para comparação: diferenças de salário dentro de um mesmo departamento nas melhores escolas do mundo raramente passam de 2 para 1, e dependem de resultados de pesquisa e ensino. Ao invés de ficar fazendo política, as pessoas concentram seus esforços no que é essencial.
Fico por aqui. Hoje os temas foram mais dispersos, algo como uma "liquidação final" de tópicos que eu achava relevante trazer para o debate. Há outros, claro. Espero que as pessoas se sintam motivadas a debater mais essa questão, e tragam novas idéias. Mãos à obra!